“Um Dia na Vida” carrega alguma estranheza e pode ser taxado para muitos com um experimento maldito, um afastamento temático e substancial de retratar as emoções, a complexidade de pessoas com papéis e vivências tão díspares como moradores de um edifício de classe média que abarca um grupo heterogêneo e complexo de habitantes em um bairro tão particular do Rio de Janeiro, como Copacabana, como em “Edifício Master” a uma liderança regional com influências tão demarcadas no nordeste, como em “Theodorico, Imperador do Sertão”.
Um cineasta que conseguiu consolidar a carreira tão voltada para o indivíduo, para contradições e dinâmicas de pulsões sociais, decide de maneira súbita abandonar dispositivos, documentações frontais para um cinema que traz o distanciamento e a suposta tendência à impessoalidade, uma vez que se trata não de filmagens estabelecidas pela equipe de Coutinho, mas sim de fragmentos que vieram da grade televisiva de diversos canais da televisão aberta, em que a manipulação das imagens não apenas é palpável no sentido da linguagem, como também é no meio. O material inflamado e carregado de mensagens previamente estabelecidas podem ser vistas como um exercício arriscado, ainda mais por um diretor reconhecido tão abertamente pelo diálogo, por um espaço horizontal de realidades e visões de mundo, a escolha de aparentemente renunciar esse lugar para examinar um terreno abertamente conhecido pela manipulação pode parecer contraintuitivo.
Porém, o realizador paulistano foi mais do que um incentivador das palavras e dos lugares de fala, mas sim um estudioso e articulador dos mais variados impactos sociológicos das ações humanas. Então voltar-se para o meio e a mensagem parece um caminho orgânico, ainda mais de algo que afetou e ainda afetam consistentemente milhões de brasileiros. Talvez revisitar “Um dia na vida” pareça um olhar anacrônico, algo não muito condizente com a realidade hoje, pois muitas pessoas abandonam e vão questionar o alcance, a relevância e até mesmo a importância de uma mídia que vai sendo engolida pela internet e redes sociais como TikTok, Instagram, Facebook e afins (palco para discussões próximas, só que outras discussões com as próprias convenções e particularidades). Mesmo que o papel da televisão aberta não seja o mesmo, é impossível negar as relações históricas e o efeito de produções de discurso e a reverberação para com o receptor.
A imagem e a palavra perdem o encantamento espontâneo que outrora tiveram, até mesmo em filmes que a dualidade de uma história vivida e correspondente aos fatos para o ofício da encenação e dramatização teatral fossem incorporadas com tanta riqueza de detalhes e possibilidades particulares em produções tematicamente ricas e complexas como “Jogo de Cena” e “Moscou”. O filme apresenta, sim, uma relação direta entre a verdade e a mentira, mas subtrai uma camada complexa e intrincada, para algo cínico e unidimensional com uma busca tão acintosa para engrandecer realidades, figuras, mensagens.
Coutinho joga essa relação incômoda ao espectador como se a montagem e a justaposição que a partir de um evidente tratamento, com elipses narrativas entre a rede de programas jornalísticos, telenovelas, programas de variedade e até mesmo os educativos, criam uma cadeia de posicionamentos que hoje, são verdadeiramente problemáticos em diversas esferas da sociedade civil e gera um atravessamento geracional onde os discursos se colidem com falas de ódio, a estimulação e perpetração da agressão, banalização do consumo em massa, onde até mesmo o telejornal vira um produto, a reverberação do patriarcado, a intolerância religiosa, a formatação da padronização da beleza, a hipersexualização do corpo feminino, a busca insaciável de criar em artistas um papel mitológico, mesmo que esses contenham elementos de identificação para meros mortais. Existem inúmeras questões evidenciadas e que algumas pela efemeridade de discursos podem ser esquecidas na mesma velocidade que passamos hoje no feed da sua rede social favorita.
É um olhar irônico e assustador perceber alguns atores sociais presentes no filme e os lugares galgados por eles na sociedade, como Wagner Montes e Paulo Guedes, para citar alguns. Mas talvez o mais assustador dentro deste diagnóstico incômodo e visceral é saber que essa produção não acaba por aí, e é tão somente uma reprodução, neste teatro de absurdos que pudemos testemunhar de forma tão vívida em anos macabros da existência humana, observe os anos tenebrosos pós-COVID-19.
É claro que estipulando recortes e examinando outros meios de comunicação, como algumas redes sociais (o YouTube, por exemplo), é possível agrupar ainda mais elementos afrontosos e mórbidos, colocando em xeque a viabilidade de uma vida harmônica e empática dos seres humanos em sociedade, mas ainda sim, é muito violento saber que em dispositivos que possuem tantas mediações, sensores e um controle tão onipresente que destila cotidianamente, apenas um recorte muito diluído e concentrado foi mostrado ao espectador.
A grade é uma condensação resumida de tudo que se passa na televisão, mas também barras imaginárias espaçadas, invisíveis a olho nu, aprisionando muitos em espaços insalubres, mesmo que a saída esteja logo ali, algum estrago já foi feito e nada será como antes.
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