
Muitas vezes, nós como humanos, esbanjamos muito dos nossos aspectos mais negativos e cáusticos possíveis; somos incompreensíveis, egoístas, pessimistas, não conseguimos enxergar o espaço do outro, alteridade. Porém, existem momentos e instantes que colocam nossa existência à prova, principalmente quando consideramos algumas datas e comemorações simbólicas para o convívio social do ser humano, - note que essa repetição da ideia de coletivo e de interação entre pessoas é coletiva, é proposital. “Os Rejeitados”, novo filme do cultuado diretor Alexander Payne (Os Descendentes e Sideways - Entre Umas e Outras), é justamente um contato de pessoas amarguradas, sendo mais exato, o núcleo narrativo é desenvolvida em torno de três pessoas, de diferentes posições sociais e idades, mas todos como uma grande semelhança, a sensação de serem rejeitados.
Um professor de história (Paul Giamatti), metido a carrasco, que todos os alunos odeiam, um aluno (Dominic Sessa) de comportamento precoce e que não consegue se identificar com nenhum colega e tem inúmeros problemas familiares e uma auxiliar chefe de cozinha (Da'Vine Joy Randolph) que precisa cumprir um horário extra de trabalho enquanto enfrenta as próprias dores e angústias sociais, o destino ou quiçá a rigorosidade desproporcional deste professor e uma forte dose do acaso impõe direções inusitadas. Ou seja, não é nenhum mistério que esse imprevisto trará algo único e particular para o trio.
A obra mergulha naquela velha sensação de “já assisti isso antes”, algo que não é só descrito pelo enredo, mas também pela ambientação de época e pelo caracterização/composição de muitos dos personagens descritos, como as figuras do valentão, do excluído, do diretor relapso. Porém, todas as convenções e os lugares-comuns são exponencialmente elevados pelos detalhes, pela construção daquelas situações e de diálogos rasteiros e inspirados, que usa da sátira e da acidez, não como um trampolim e um truque para engajar o espectador, mas sim de elementos que revisitam os comportamentos e interações dos personagens e criam uma relação genuína de humor e leveza, sem omitir a densidade dos conflitos internos e situacionais desses personagens. Sem parecer brusco e tendo como principal virtude explorar diferentes temáticas ventiladas no trama como a influência da política, da fé e do papel na nossa articulação social, além do já citado panorama histórico mundial (afinal a trama se passa ao longo da Guerra do Vietnã), mas estes são assuntos que surgem organicamente ao longo da trama, sem jamais soar panfletário ou sem propósito. Ademais, o recorte temático natalino é muito aproveitado e justifica se aproveitando do já característico tom agridoce adotado por Payne, que reforça dinâmicas curiosas e intrigantes a este elo peculiar de personagens tão parecidos e tão distantes ao mesmo tempo, seja nos ideais, nos desejos e nas visões de mundo. Isso fica mais claro principalmente na relação entre os personagens de Giamatti e Sessa.
A ideia de uma crônica ao longo do tempo, algo que já tinha chamado atenção em “Sideways”, se mostra um caminho perspicaz que potencializa a ideia de encontros, novas descobertas e aproximações. Exatamente quando um personagem reforça o padrão previamente estabelecido ou contradiz as expectativas preconcebidas com ações e tendências difíceis de antecipar. É com esses arranjos e construções complexas e sutis em que a produção encontra seu eixo, como um espelho, porém de natureza opaca e que avança com múltiplas reflexões. A jornada transforma, mas não os reduz às mudanças milagrosas, assim expõe a ação do tempo como um resultado da experiência da vida.
Payne conduz com atenção aos detalhes, frequentemente recorre ao close-up, ao plano detalhe e nas minúcias vai se potencializando essa engrenagem conflituosa e psicológica já explicitada desde o começo, reforçada com uma atenção delicada a coordenação dos atores e no gesto da interação e convívio que muda ao longo do tempo, o uso estratégico de planos abertos e movimentos de câmera expressivos reforçam uma unidade espacial/geográfica para as temáticas e discursos do filme que brinca com as relações da frieza, a racionalidade, para a emoção e a fraternidade tão exaltada no período natalino.
Paul Giamatti novamente brilha ao apresentar doses cavalares de neurose, ironia e um domínio corporal que impressiona. Um personagem propositalmente inconveniente e antipático, mas tão verdadeiro e complexo, principalmente pela composição imprevisível e intensa que despertam várias impressões e sensações, mas de fato, não se pode negar que é um personagem com alma. Já Dominic Sessa, adiciona uma camada elegante e carismática a um arquétipo razoavelmente comum, a de um jovem rebelde e rejeitado socialmente que encontra, em uma amizade inesperada com alguém mais velho, um ponto de apoio. Porém, talvez o grande destaque fique por conta da explosão e intensidade de Da'Vine Joy Randolph, que traz uma força e uma emoção genuína até em onomatopeias como “hmmm” e defende um arco forte e crível.
“Os Rejeitados” pode despertar comparações com diversos filmes, principalmente de produções das décadas de 70 e 80, mas encontra força no equilíbrio arrojado entre a comicidade e o drama, e um olhar que acena para uma visão otimista, embora ainda um tanto amarga.
NOTA: 8
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