“Mussum: O Filmis”, é a estreia do ator Sílvio Guindane na cadeira de direção, recém premiado no Festival de Gramado e ilustra uma feliz coincidência: foi exibido para a parte da imprensa do Rio de Janeiro, ontem, no dia 11/10, data comemoração de aniversário de um dos maiores patrimônios culturais da sociedade brasileira: Cartola, que completaria 115 anos. A citação dessa efeméride não vem por acaso, uma vez que Antônio Carlos Bernardes Gomes, o Mussum, é mais conhecido do grande público por ser humorista e um dos grandes nomes por trás de Os Trapalhões. Só que muito antes disso, ele foi integrante de um dos principais conjuntos de samba do país, estou falando de Os Originais do Samba. Às origens e a ligação de Mussum com o samba é evocada a todo momento neste novo retrato do comediante nos cinemas, agora através da ficção, depois do sensível documentário de Susanna Lira, “Mussum, Um filme do Cacildis”.
A cinebiografia geralmente tende a algumas armadilhas, entre elas a simplificação de acontecimentos, e uma certa tendência de um excesso de artifícios para que estes episódios cheguem aos olhos do espectador, muitas vezes como meros resumos protocolares, episódios e páginas a serem ditos, com o risco de cair em algo que flerta mais com o enciclopédico, atropelando emoções e dificultando a compreensão e empatia para o aspecto humano, para além do contexto da figura pública, o que não quer dizer que não existam trabalhos que são reféns disso, podemos exemplificar em obras do cinema brasileiro, como “Nise: O Coração da Loucura”, que é competente ao trazer o humano para seu legado, mas para cada filme como esse, existem exemplares como “Somos Tão Jovens”.
O recorte do roteiro de Paulo Cursino, traz uma estrutura não-linear e com o uso de flashbacks para pontuar as fases, ilustrando momentos, experiências e os encontros de vida que vai desde a infância há um momento intermediário e depois, o momento mais maduro que é sempre impulsionado pela imagem do trabalho humorístico de Mussum, porém reforçada na ideia de um percurso.
Nesse sentido, “Mussum - O Filmis” não sai exatamente ileso desse fator, entrarei em mais detalhes a seguir, mas a preocupação de trazer na biografia de um homem de diversas fases, que assumiu diversas alcunhas, um mosaico vivo de signos sensíveis que estão impressos na personalidade, mas talvez possam ser reduzidas pelo imaginário do artista com um mero comediante, um palhaço. E nessa leitura entra não só o samba e a música, mas o vínculo familiar do subúrbio carioca, o comportamento social e as escolhas de vida.
Ao mesmo tempo que ele é visto como alguém espirituoso, carismático, dotado de sensibilidade artística, também mostra facetas de malandragem, excessos e desvios de comportamento. Há uma preocupação narrativa em tentar reforçar algumas particularidades e tratá-lo, portanto, como alguém de incontestáveis méritos, mas também falhas. Todavia, essa balança nem sempre é equilibrada e muitas vezes o artista e o lado bonachão são mais enfatizados, enquanto algumas ações parecem não ter o mesmo peso dramático.
A leveza e a comicidade são mais preponderantes e eficazes, e quando o filme precisa pontuar episódios mais carregados no drama, a força é mais diluída, apesar de ter momentos de força e impacto que possam emocionar. Principalmente, na ênfase emocional da importância da mãe dele na vida e carreira e como ela foi central na formação dele como artista. A mãe, Malvina (performada em duas fases por Cacau Protásio e Neusa Barbosa, respectivamente), injeta essa preocupação, zelo e doses cavalares de personalidade, conduzidas com cuidado pelas duas intérpretes.
Aílton Graça se escora bem no carisma e trejeitos expressivos e enfáticos, usando muito da coloquialidade, de uma comunicação de rua e claro, reproduzindo algumas tendências dos recursos cômicos do próprio Mussum, e nisso ele é muito eficaz, apesar de não ter a mesma fluência na hora do drama, mas ainda segura bem as pontas e é uma atuação bem sólida.
Yuri Marçal faz a versão intermediária do sambista e humorista no papel mais desafiador e recheado da sua carreira até então, e assim como Graça traz esse tom despojado e se apoia na jovialidade e carisma, também se sustentando melhor na veia cômica, mas não faz feio quando é exigido um tom mais dramático.
O resto do elenco de apoio é funcional em trazer para o espectador uma ideia de como seria tanto o núcleo familiar quanto os bastidores do meio artístico, o uso de convenções narrativas e a trajetória de ascensão e turbulência acabam não valorizando tanto algumas atuações como a de Felipe Rocha, interpretando Dedé de forma apenas correta, ou uma participação mais cínica e pontual de Gero Camilo como Renato Aragão. Entretanto, a participação de Nando Cunha, fazendo uma ponta como um grande artista brasileiro, é muito divertida e inspirada.
Como dito anteriormente, existem algumas convenções típicas e interesses de retratar momentos específicos e questões sensíveis que muitas vezes resvalam no burocrático e nem sempre a ênfase no samba e as recriações são convincentes e o drama fica menos calibrado.
A direção de arte com os cenários e as localidades bem específicas, fidedignas e pautadas na descrição ajudam a fomentar um apelo nostálgico de um personagem tão presente no imaginário popular ao invadir as telinhas e telonas de tantos brasileiros, sendo assim, localizam a obra e ajudam a sedimentar essa aura artística e cultural de alguém que sempre viveu e consumiu arte de alguma forma e os componentes de cena.
Silvio Guindane surpreende às vezes, até com um plano sequência sofisticado em um momento determinante para a vida de Mussum e acerta pela busca em trabalhar a linguagem cinematográfica a fim de evitar alguns engessamentos tão comuns em cinebiografias e evidenciar as facetas. E apesar de algumas elipses e questões serem um pouco bruscas e nem sempre dosar bem o tom narrativo, como no presente, exemplificado no terceiro ato da produção.
“Mussum: O Filmis” tem todas credenciais para o sucesso, conseguindo retratar uma figura importantíssima para a cultura brasileira nas telonas e eternizar as complexidades e o legado dele de forma acessível, mesmo que haja alguns tropeços, mas ainda, sim, tem boas virtudes e pode dialogar com diferentes pessoas.
O filme estreia exclusivamente nos cinemas no dia 02/11/2023
FICHA TÉCNICA
Elenco: Ailton Graça, Thawan Lucas Bandeira, Yuri Marçal, Cacau Protásio, Neusa Borges, Jeniffer Dias, Késia e Cinara Leal.
Produção: Camisa Listrada
Coprodução: Panorama Filmes, Globo Filmes, Globoplay, Telecine, RioFilme
Distribuição: Downtown Filmes
Direção: Silvio Guindane
Roteiro: Paulo Cursino
Produtor: André Carreira
Produção Executiva: Ângelo Gastal e Cacala Carvana
Direção de Produção: Mariângela Furtado
Direção de Fotografia: Nonato Estrela
Direção de Arte: Rafael Targat
Montagem: André Simões
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