“Marinheiro das Montanhas” pode ser visto como um espelho, um reflexo de pensamentos, estágios, dramas e escolhas artísticas que permeiam a obra de um dos cineastas brasileiros com mais prestígio na atualidade, Karim Aïnouz. O diretor não apenas explicita às suas origens genealógicas, como decide investigar por meio de uma longa viagem transportada em primeira pessoa ao revisitar o país do Norte da África, mas também com um repertório de tendências estéticas e discursivas que sedimentaram Aïnouz com uma das vozes mais distintivas do cinema brasileiro com produções que vão dos dramas arrebatadores que tiveram grande projeção para um público mais amplo, entre eles “Madame Satã” (2002), “Céu de Suely” (2006) e “A Vida Invisível” (2019).
A territorialidade e a identidade são marcas carregadas do autor e neste projeto essa relação fica cada vez mais delimitada, onde a autobiografia e a inflexão sobre si estão presentes a cada momento do longa-metragem, o espectador logo de cara já é confrontado com a poesia, tacitamente, com uma cartela introdutória explicando de maneira didática, mas sem perder a inclinação para o lirismo, entre as explicações fica na imagem algo que vai definir a produção: “um delírio frênico em direção aos trópicos”, logo depois imagens panorâmicas da vista dos aviões com uma das nuvens mais exuberantes captadas na atmosfera, embaladas pela beleza do pôr do sal, e o infindável e expressivo alto mar, entrecortado pela estrutura invasiva da transportação marítima.
O diretor não deixa dúvidas que se trata de fato de uma jornada, mas que será guiada por uma voz ativa, presente e que não economiza na subjetividade, e especialmente, na autoafirmação dele como sujeito. Talvez lembre algum filme, com um título bem característico e que não economiza nas palavras, se você estava pensando em “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2009), acertou na mosca.
Mas se ali existia a presença de um ator “invisível” em que os dramas dele costuravam e davam camadas poéticas, aquela realidade típica do imaginário de um Brasil profundo e as riquezas do sertão por meio de um diário não cronológico e imprevisível, em “Marinheiro das Montanhas”, a interpretação de si e autodeclaração de um cineasta em primeira pessoa que compartilha um diário de viagem, mas que dessa vez existe uma certa cronologia retórica em retratar aqueles passos e vivências, fazendo possível que algumas presunções de certas reflexão e confissões presentes em tela sejam viáveis de serem de alguma forma antecipadas.
Por outro lado, um aspecto singular que foi muito recorrente no longa de 2009, retorna aqui com uma precisão ainda maior, me refiro a manipulação visual e sonora do filme que colocam esse discurso em outros lugares reforçando uma experiência que também é sensorial como se essas imagens fossem capazes de transportar o espectador para lugares geográficos, mas também afetivos, em uma seleção de imagens descritivas, que despertam intrigas, dúvidas, percepções plurais para algo que se desenrola como uma verdadeira experiência.
Essas manipulações se resumem, as diferentes estilizações de imagens, afinal, o diretor captou imagens em diferentes tipos de película, super 8, as captações digitais e fotografias, catapultados por recortes e estilizações. O som potencializa as passagens, com um desenho cristalino e minuciosamente colocado de eventualidades desse cotidiano em trânsito, que vão da precipitação dos mares, ventos, a chamada em francês de aeroportos, passos e outros que juntos incorporam a sensação de um percurso em fim evocado pela construção ensaística proposta por Karim.
O discurso é pausado, não economiza em detalhes, em revelar intimidades, e explicações vulneráveis, além de sedimentar a poética do diretor, que já foi muito exercitada pela conjunção entre imagens e palavras, mas nesta obra, elas ganham um caráter mais visceral e transparente de alguém disposto a explicitar inquietudes e referências.
Se em “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo”, o “eu lírico”, o geólogo José Renato, alguém que não vemos em tela, profere seu coração partido por Joana e reflete a dificuldade de viver cotidianamente em uma profissão que exige muitas renúncias e forças de espírito, em “Marinheiro das Montanhas”, Karim se apropria dessa condição e deixa claro o distanciamento com o país de seu progenitor e toda a família paterna e como esse afastamento fortalece e complexifica o vínculo com a mãe, Iracema.
É curioso, em um intervalo de pouco mais de um mês, dois filmes de diretores muito celebrados (Kleber Mendonça FIlho e Karim Aïnouz) cheguem no circuito de cinemas brasileiros, utilizando com tanta propriedade e fluência, o arquivo para se contar histórias e percepções íntimas e que possuem influência direta da figura materna, e que refletem a carreira a partir de localidades caras a eles, no caso de "Retratos Fantasmas", Recife e de Karim, os impactos da Argélia, mas também traz muito das influências e reverberações da cidade que viveu a maior parte da vida, Fortaleza.
A história política, familiar, perceptiva e criativa se entrelaçam e criam um organismo único, mesmo que alguns momentos reverberam questões já ressaltadas pela narrativa, em especial quando capta depoimentos de locais e familiares. Mas as redundâncias não eximem a força de tentar compreender culturas, posições e lugares emocionais, e por que não servir como um espaço de autoconhecimento e aflorar sensibilidades e a voz artística, gerando assim uma obra que emociona e instiga na mesma medida.
O filme estreia exclusivamente nos cinemas no dia 28/08/2023.
FICHA TÉCNICA
Um filme de: Karim Aïnouz
Roteiro: Karim Aïnouz, Murilo Hauser
Direção de Fotografia: Juan Sarmiento
Produzido por: Walter Salles, João Moreira Salles, Maria Carlota Bruno
Produtores Associados: Marie-Pierre Macia, Claire Gadéa, Jihan al-Tajri, Jennifer Sabbah-Imaggine, Karim Aïnouz, Christopher Zittebart
Uma produção: Videofilmes
Em coprodução com: Globo Filmes e Globonews
Em associação com: MPM Film / Big Sister / Cinema Inflámavel
Distribuição: Gullane
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