Os filmes de Kaiju, isto é, o subgênero de ficção científica que nasce no Japão e se torna um dos mais frutíferos, que envolve a relação entre humanos e criaturas monstruosas gigantes de forte teor de calamidade pública, evidenciando um risco real para a existência da humanidade. A popularidade praticamente atemporal desde a formalização do gênero na década de 50 e que ainda gera êxito como as releituras do diretor Hideaki Anno como no recente “Shin Godzilla”, além das contínuas exportações para Hollywood que logo trará um novo embate entre dois dos monstros mais famosos da história do cinema, Godzilla e Kong.
No meio desse caminho, surge agora em 2023 uma nova leitura deste universo longevo e trabalhado por inúmeros diretores de diferentes tendências, regido por Takashi Yamazaki, responsável por transportar para o meio cinematográfico inúmeros projetos originalmente de outras mídias, como o Mangá e as séries de Anime, elementos que se tornaram característicos da cultura japonesa, mas que atingiram patamares de alcance global; entre as muitas adaptações estão de mangás como Lupin III, Doraemon, Zero Eterno. Outro fator distintivo de Yamazaki, é o apreço aos efeitos visuais e como os mesmos são empregados dentro da narrativa, portanto é mais do que natural que o cineasta criasse um universo englobando o “Deus da destruição”, como o réptil monstruoso se popularizou mundo afora.
Apesar de possuir bons credenciais e possuir realizador à altura de um projeto como esse, podem existir dúvidas se existe algum espaço para criar a partir de algo tão canônico e arraigado pelo senso comum, mesmo que obras recentes de reimaginação de universos compartilhado tenham recebido atenção e aceitação por parte do público e crítica. O já estridente sucesso deste novo projeto de Yamazaki, “Godzilla Minus One”, que atingiu o raríssimo feito de estar entre as maiores estreia comerciais da semana na bilheteria estadunidense, dividindo o posto com o também nipônico “O Menino e a Garça” (ainda sem distribuição oficial no Brasil), algo digno de nota considerando o fato de que o filme, na maior parte da própria duração, é falado em uma língua não-inglesa. Mas extraindo os indicadores e prognósticos, o que distingue “Godzilla Minus One” de outras produções similares?
Neste novo projeto existe um grande apreço para uma ambientação, não somente de introduzir efeitos e ações, mas trazer uma dimensão de identificação, uma localização histórica para o espectador, facilmente decodificada no contexto da Segunda Guerra Mundial, não se limitando a transmitir o impacto da destruição espacial e desamparo emocional dos habitantes, o filme também identifica códigos morais dos agentes de guerra, como o papel dos aviadores militares que ganham a alcunha de “Kamikaze”, ganhando uma posição quase universal; é a partir de dinâmicas de ética e papel social fortalecendo algo que ganha ainda mais dimensão considerando a imagem pública construída ao longo das gerações na terra do sol nascente, de tragédias quase inenarráveis seja pela ação do homem ou provocada por catástrofes naturais, e é a partir dessa ideia que o pathos de país com histórico de devastações entra em um abalo sísmico com a figura de um monstro ameaçador, imparável que num piscar de olhos destrói edifícios, extingue uma multidão, ampliando de maneira desoladora o que significa uma guerra em termos práticos.
A força catártica canalizada nesses processos em que a incerteza de viver se torna ainda mais palpável como uma ameaça tão drástica, temerária. Algo que não é simplesmente sugestionado, manipulado. Afinal, o mundo colapsa aos olhos do espectador. Algo que dificilmente seria exitosa se não tivesse uma maleabilidade minuciosa de Yamazaki em estipular uma decupagem milimetricamente calculada que enfatiza e destaca situações com controle, separando a catarse e o núcleo dramático até modular a essência deste subgênero antes do inevitável embate entre os humanos e a figura do Godzilla; e sem banalizar o impacto de uma conjuntura que facilmente poderia cair em um território arriscado ao juntar questões sensíveis da existência humana com a alegoria fantástica, que poderia cair uma banalização por representar, sim, um personagem trabalhado em excesso no senso comum e possuir alguma saturação em detrimento do volume que esse personagem representa na cultura pop mundial.
Porém, é, por meio da utilização de elementos cruciais para uma narrativa audiovisual, isto é, a imagem representada por um esmero criativo de efeitos visuais imersivos que não somente justificam o medo e a ameaça nessa composição imagética desse monstro e o que esse ele resulta, a aniquilação em massa de casas, prédios e espaços públicos, uma avalanche de explosões expostas de maneira acachapante. Outro elemento, algumas vezes subestimado, é o som; um mecanismo que induz, prepara e acompanha os recursos usados tanto pela mixagem e desenho sonoro, criando elementos que abarcam a relação visceral que ainda é ampliada pela trilha musical assinada por Naoki Sato, que é crescente, ruidosa e muitas vezes harmônica e com uso de corais, que em nenhum momento deixam de estabelecer uma sensação épica de sugerir grandes acontecimentos.
Ambivalente, intenso e de qualidades cristalinas, “Godzilla Minus One” mais do que consolida o realizador para além do mercado doméstico japonês, e assim como no ano passado com o filme indiano "RRR", demonstra que grandes produções internacionais podem ter um alcance global para um público amplo.
FICHA TÉCNICA
Direção: Takashi Yamazaki
Roteiro: Takashi Yamazaki
Trilha Sonora: Naoki Satô
Direção de fotografia: Kôzô Shibasaki
Edição: Ryûji Miyajima
Efeitos Visuais: Tatsuya Hayasaki, Eiji Kitada, Shinya Suzuki, Kosuke Taguchi, Kyôhei Takeda, Takayuki Ueki, Takushi Yamaguchi, Takashi Yamazaki
Elenco: Ryunosuke Kamiki, Minami Hamabe, Yuki Yamada, Munetaka Aoki, Hidetaka Yoshioka, Sakura Ando, Kuranosuke Sasaki
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