Em 47 anos de carreira, a diretora francesa, Catherine Breillat se consolidou pela vocação de abordar de forma frontal e implacável alguns temas sensíveis, desafiadores e contraditórios envolvendo a sexualidade. O novo projeto, é lançado dez anos após a estreia do último longa-metragem dela até então (“Uma Relação Delicada”). A história retrata um relacionamento conturbado e desigual, marcado por manipulações e cinismo.
A produção é uma releitura de “A Rainha de Copas” de May el-Toukhy, e apesar do texto adaptado de Pascal Bonitzer e da própria Breillat, conservar muito das escolhas narrativas para o desenho das relações dos personagens, isto é, a dinâmica social, que envolve uma advogada especializada em defender jovens, vítimas de abuso sexual e uma família formada. Mas no meio deste cenário, temos um retorno, este alguém não é um homem, tampouco parece um menino. É nesta teia espessa e arenosa, que a cineasta francesa decide realizar a própria costura, resgatando algumas das obsessões apresentadas ao longo das décadas da carreira. Menos interessada nas vicissitudes do jogo da sedução e nas nuances do vínculo amoroso de duas pessoas em condições diametralmente opostas, sociais e etárias, e apesar de não ignorar, o real interesse desta produção parece mesmo o estudo de outro tipo de relação, as de poder.
Existe um desequilíbrio tácito, entre os papéis que esses personagens ocupam. Em primeiro lugar vemos Anne (Léa Drucker, ótima), alguém que inegavelmente está numa condição de poder, seja pela posição de controle da própria profissão, onde possui a liberdade de instruir, questionar, desdizer e guiar os posicionamentos de clientes. Também está em um patamar financeiro confortável, com condições materiais plenas e um relacionamento estável, a melhor definição de soberania possível. Pode haver alguma coisa, abalar tudo, e toda situação sair pelos trilhos. Sim, o desejo, - que a tradução brasileira fez questão de explicitar - Isso tudo municiado por Théo (Samuel Kircher), o enteado que representa uma virilidade inegável, constantemente sem camisa e de uma fisionomia chamativa e longos cabelos encaracolados e loiros, é alguém descompromissado, um típico “rebelde sem causa”. Mas estamos falando de um indivíduo dependente financeiramente e ao não conviver naquele ambiente por algum tempo, é uma figura insólita, um incômodo mesmo e nada será como antes.
Aqui se escancaram as antíteses, nestas relações onde a defensora agride, a vítima desenvolve uma ligação emocional com o agressor, ninguém mais confia em ninguém, se perde o pudor. As mentiras correm soltas e tudo é frio, sem esperanças. A saída não existe, entretanto, a principal questão aqui é que por mais que exista o cerne de um tópico espinhoso, uma relação tóxica e deliberadamente abusiva entre pessoas com grande diferença de idade, entre eles um menor de idade, o que é mais grave, considerando que este parceiro se trata do próprio enteado, e por mais que essa relação seja escavada, principalmente para apontar essas relações de dominação, imposição de individualidades e o incessante cinismo que podemos alcançar.
“Culpa e Desejo” parece sempre estar em um ponto de ebulição que nunca culmina, pois não trafega mais fundo nessas complexidades e parece sempre enunciar algo mais grave e urgente para além dessas possibilidades e por mais que a obra possua momentos fortes e implacáveis, há movimentos inorgânicos e pouco convincentes na cadeia de relações, especialmente no que tange o papel do marido, Pierre (Olivier Rabourdin).
Mesmo que não seja uma das obras de maior impacto da autora francesa, é admirável a força dessa inclinação de cutucar feridas e anseios negativos da existência humana por meio do olhar corajoso que não poupa desconfortos, violências e as cruezas embutidas na vida em sociedade.
FICHA TÉCNICA
Diretora: Catherine Breillat
Roteiro: Catherine Breillat com colaboração de Pascal Bonitzer Produção: Saïd Ben Saïd Produção Executiva: René Ezra, Caroline Blanco, Clifford Werber Direção de Fotografia: Jeanne Lapoirie AFC Direção de arte: Sébastien Danos Figurino: Khadija Zeggaï Edição: François Quiqueré LMA
Comments