O espectador é mergulhado em um ambiente detalhado que já cria uma relação de tensão quase instantânea, pois somos levados a uma vista específica de uma casa. Não vemos à priori pessoas, mas uma voz já ecoa no fundo, enquanto se vê ao centro uma de madeira gasta de contornos finos, as paredes igualmente possuem um ar danificado, ampliado por uma iluminação natural predominantemente escura, embora claramente é dia do lado de fora, isso fica nítido pois a porta está entreaberta. De repente uma bola cai no chão - A ação parece inofensiva e decorre com o cachorro de estimação pegando o objeto com a boca, e finalmente vemos duas mulheres no cômodo e entre uma conversa que se desenha em contornos profissionais, um som forte de uma música invade os tímpanos delas (e das pessoas que assistem ao filme). Até aí, poderia ser uma situação aparentemente normal, sem um significado mais concreto. Algo que é ressignificado com a ênfase na expressão de desconforto, dúvida e uma sensação de violência pela natureza abrupta e desmedida que essa música aparece.
São essas medidas que partem de um ambiente microssocial, mais sutil e pontual, que partem para uma relação macrossocial de situações gravíssimas e reflexões substanciais. Afinal, o filme de Justine Triet (Na cama com Victória), trata naturalmente de uma queda que é mais reflexiva para nós seres humanos do que um acontecimento banal como este descrito acima. Morte natural? Suicídio? Assassinato? As possibilidades e a busca de responsabilizar um indivíduo, cria uma relação imediata de culpa, mesmo que as provas ainda sejam ambíguas e isso se intensifica mais, a partir do fato da principal suspeita (única neste caso) ser a esposa do falecido. Não demora muito para perceber que a produção parte para um caminho analítico e que parte essencial da história é contada na corte, dissecando as situações por meios dos procedimentos judiciais, que guiam a produção para discussões sérias, como os desequilíbrios, excessos, desarmonias e principalmente a violência psicológica e física da relação matrimonial de um casal heterossexual, porém mais do que este olhar, existe uma atenção para debater os papéis individuais no meio de um tribunal, incluindo a figura de juízes, advogados de acusação e defesa, a promotoria, as testemunhas oculares e ativas e assistentes sociais. E numa cadeia de relações nada simples e fáceis, é que o roteiro da própria Triet e o colaborador frequente dela, Arthur Harari, costuram com habilidade e muita identidade as dinâmicas que são tanto de dentro para fora, no caso da relação pessoal da protagonista, Sandra Voyter (Sandra Hüller), com o então marido Samuel Maleski (Samuel Theis) e filho do casa, Daniel (Milo Machado-Granier), quanto a relação de fora para dentro com os agentes (e observadores) da lei e a reação de Sandra com ré.
Existe um diálogo temático com longas anteriores da diretora, isto é, tópicos que envolvem complicações morais e legais dentro das relações interpessoais (frequentemente entre homens e mulheres). Enquanto Sibyl (2019), trata de uma psicoterapeuta que cria uma obsessão e um interesse com uma paciente atriz para além do código de conduta ético do exercício da profissão, Na Cama com Victoria (2015), conta a história de uma mulher que se envolve com alguém acusado de homicídio e por fim, A Batalha de Solferino (2013), traz um divórcio, um homem que se recusa a cumprir a lei e passa a visitar insistentemente a casa da ex-esposa jornalista, que cria uma relação desequilibrada. O diálogo temático, entretanto com uma abordagem frontalmente dramática, o interesse em explorar a psicologia dos acontecimentos, é ainda mais enfatizada. Sim, alguns recursos mais evidentes em outros trabalhos, como a ironia, não é um mecanismo tão recorrente aqui, entretanto, uma tendência frequente da diretora, é a metalinguagem. (Note como algumas linguagens, gravações, perícias, autos, são incorporados). Estes elementos trazem camadas imersivas e intensificam o arco dramático do filme, ainda com mais identificação e elementos que vão sendo percebidos a cada detalhe, gestos e situações. As palavras e imagens se complementam e dialogam organicamente, sem parecer uma fabricação forçada para reiterar o discurso. O espaço geográfico se comuta com o cênico, o que nós vemos e deixamos de ver, o que é ressaltado e os elementos que não são, aliadas ao impacto sonoro, não apenas pela forte presença musical, mas quanto o calculado uso de silêncios e pausas precisas.
Para um filme que se propõe a ser tão psicológico, é necessário, ainda mais neste caso - que o elenco consiga acompanhar a proposta da direção. Nomes como Swann Arlaud, Jehnny Beth e Anthony Reinartz trazem importantes contrapontos firmes e particulares que evocam sensações fortes, apesar de funcionarem em prol dos dois personagens com maior tempo de tela, no caso de Hüller e Granier, se Sandra transborda em tantos sentimentos e expressões que são exploradas de diversas maneiras seja facial, corporal ou pela entonação de voz, trazendo um viés genuíno, intenso e de muitas facetas que vão cada vez sendo ressignificadas ao longo da projeção. Já o jovem ator carrega um papel complicado e não apenas emociona, como demonstra uma maturidade crível e protagoniza momentos poderosos com muita entrega.
Não é por acaso que “Anatomia de uma Queda”, tenha se tornado um protagonista na temporada de premiações e no meio do cinema mundial, que consagra sua realizadora após trabalhos instigantes e de muita personalidade, com um projeto ainda mais ambicioso, que desperta questionamentos e situações de alerta.
E a presunção de inocência? O nosso tratamento jurídico e capacidade moral de julgar certos eventos? Como se determina uma vítima?
“Anatomia de Uma Queda” estreia exclusivamente nos cinemas na próxima quinta-feira!
Comments