Enfrentar essa falta de lugar me fez uma pessoa melhor, mas cheia de silêncios
Os trabalhos da diretora mineira Clarissa Campolina frequentemente se inclinam para registros de uma intimidade, muito pautados pelos interiores e pelos retratos emotivos que vão extraindo por camadas e camadas de momentos sensíveis de uma passagem, a tentativa de fugir de prisões emocionais deliberadamente conflitivas.
A busca por um lugar, a tentativa de decifrar, compreender, postular algo, seja o espaço próprio e a consolidação da carreira profissional, faz Jimena (Mônica Maria) viver um processo inquietante em que ela aparece trafegar círculos espaciais, geográficos e emocionais, o coração Belo Horizonte se empalidece aos deslocamentos e angústias existenciais. Tudo é lacunar, a relação familiar cifrada, as incertezas de um próximo passo, o que é viver em uma metrópole. O silêncio por muitas vezes é um ruído ansioso do que não conseguimos antecipar, o futuro.
Campolina tematiza tópicos que vão do amadurecimento ao desabrochar de uma mulher e todas as complicações expressas nesse processo, situada em um contexto específico, o multiculturalismo étnico de uma grande metrópole da América Latina. Andanças, incomunicabilidades, distanciamentos. Das relações familiares tóxicas que perpassam a problemática das relações das especificidades do racismo estrutural, como o colorismo e a xenofobia. O quanto as agressões formam um caráter? Existe possibilidade do perdão? entre muitas perguntas, muitas afirmações também povoam esses questionamentos e é o que a diretora, Clarissa Campolina expõe.
Aqui o tratamento dado a Jimena é tanto de uma agente que se desenvolve emocionalmente a partir das revelações que o cotidiano e o entorno da cidade mineira propicia, são verdades ora duras, envolventes, curiosas e difíceis que moldam um ponto de vista. Mas existe, também, a própria mediação, composta aqui por um fluxo de consciência, entre reflexões abstratas e uma fluidez poética para fazer rubricas existencialistas da própria existência.
Essa decisão, todavia, causa um apelo dicotômico e reforça um viés de distanciamento pelo viés frio, empalidecido que acomete a narrativa do filme. Algo não muito distante do que ocorreu no longa anterior “Enquanto Estamos Aqui”, em que a poética sentimental de distanciamentos e memórias se sobrepõem à narrativa em si. Entretanto, “Canção ao Longe” busca assumir um estudo de personagem, em primeira pessoa, mediante eventos que não escondem a mise en-scène ficcional veiculada
O ódio aqui é uma representação velada, algo que irresoluto deixa cicatrizes pela negligência e a ausência de um diálogo desmorona as possibilidades de resolução. A violência existe e na impossibilidade de drená-la, Campolina parece apontar para a necessidade de um amor-próprio, ou as via do tão sonhado e muitas vezes tão distante, autoconhecimento.
O olhar regionalista, entre frestas de janelas, de sacadas e o olhar longínquo de um fluxo de cidades em que muito se observa e pouco se assemelha, a apreensão de fato perceber algo, a inerência do paradoxo de se sentir pertencente a uma solidão mesmo estando em contatos incessantes por muitos momentos. O trabalho sonoro é minucioso e descritivo que capta os ruídos e os sons ambientes, reforçando o viés cosmopolita que perpassa a história.
Os planos aproximados enfatizam o corpo, a expressão, em um processo que se apropria do silêncio tátil, em que a observação das movimentações e dos espaços reforça a necessidade de se afirmar. As manifestações de afeto voltados com semblantes tristes e movimentações corporais rígidas trazem essa impessoalidade incômoda que tem a correspondência nos discursos e no semblante carregado, fatigado da protagonista
Mônica Maria, em sua estreia em longas, traz uma presença de cena forte e seu papel exige muito de um comprometimento físico por estar mais associada ao interior e o psicológico, e consegue transmitir a sensação de estar em um processo de decodificação e buscas demandadas por Jimena. Nomes do elenco, como, um dos principais atores do atual cinema contemporâneo brasileiro, estão apenas corretos em ser uma mola propulsora para que Maria possa exercer o rito de passagem estabelecido pelo filme.
“Canção Ao Longe” é mais um exemplar difuso e carregado no currículo de Campolina, que por se afastar de algumas concretudes, gera ojeriza por parte de muitos. Porém, traz percepções fortes e impassíveis, municiadas por um retrato específico e particular, com uma atuação de um nome promissor para o cinema brasileiro
Distribuído pela Vitrine Filmes. O filme ainda pode ser visto nos cinemas em três cidades do Brasil até 16/08 (Quarta): Palmas, João Pessoa e São Paulo.
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