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Foto do escritorMarcio Weber

Assassinos da Lua das Flores


assassinos da lua das flores martin scorsese

É difícil não rotular “Assassinos da Lua das Flores” como um épico por todos os fatores envolvidos na produção, Martin Scorsese já tem seu nome mais do que fincado na história do cinema, seja pela vasta produção que tocaram em diversos temas, tendências, estilos, e títulos que vão de “Caminhos Perigosos”, “O Rei da Comédia” para “Depois das Horas” e “O Último Concerto do Rock”. E essas são apenas citações recortadas do mostruário vasto e versátil de um indivíduo que acompanhou as tendências, discussões e luta pelo resgate e a salvaguarda da memória do cinema mundial, afinal, ele é o coordenador da Film Foundation, uma das principais fundações para organização de fundos para a preservação fílmica que restaura obras cinematográficas de diversos países e movimentos ao redor do mundo. A maturidade e versatilidade, além do refinamento professorado por um realizador que nos seus ainda exatos 80 anos de vida, demonstra uma vitalidade, domínio e intensidade para com a realização cinematográfica, acompanhado de uma inquietação para revisitar e ampliar os debates de uma história trágica de genocídio no território de Oklahoma, nos Estados Unidos, que apresenta a segunda maior população nativo americana do país.


Inicialmente transposto do livro de não ficção de David Grann, “Killers of the Flower Moon: The Osage Murders and the Birth of the FBI", é aqui que a sensibilidade e o refinamento artístico potencializa a urgência de revisitar a historiografia de uma nação que se forma de maneira tão beligerante e conflituosa, entre a perpetuação de massacres e violências simbólicas como os Estados Unidos. Não por acaso, o diálogo com a contextualização histórica se faz presente de uma maneira explícita e pontuada, existem cartelas, imagens de arquivo e recriações para situar e ambientar os acontecimentos e situações ocorridas em meados de 1920, portanto, algumas situações são colocadas de maneira gradual que mostram a dicotomia entre a relação de progresso atrelada a figura da exploração colonizatória, tipicamente expressa pelo homem branco, que pelas disputas de poder e por visar uma expansão de influências e territórios, desconsideram povos que já tinham uma influência sobre o local.


Os avanços e esses domínios são simbolizados por motores incessantes dessa engrenagem e a fumaça acachapante dos trens. Esses trilhos vão se desenhando em alicerces, como departamentos, comércios, novas instalações. Mas se por um lado, vertiginosamente, há uma expansão de poder e influência, sem quaisquer tipos de restrições, existe outra face desta mesma realidade. E as pessoas originárias, que já estiveram lá, o que elas sentiam? Quais os impactos deste avanço? Quais as consequências? O que foi deixado como legado? Essas perguntas, são colocadas frontalmente em relação aos Osage, a partir da história central dos três personagens com papéis e pesos bem estabelecidos que paulatinamente vão sendo interpretados e percebidos diante do espectador. A narrativa é catapultada pelo olhar de Ernest Buckhart (Leonardo DiCaprio), um homem médio, bem-apessoado no contexto familiar que migra de cidades para ganhar a vida sendo apadrinhado por ninguém menos que seu tio, a liderança carismática, acalorada e intensa de William Hale (Robert De Niro). A influência de Hale, ou “Rei” como prefere se autodenominar, não tarda para que Ernest se torne um pródigo nome na comunidade, e no ambiente de trabalho, conhece Mollie (Lily Gladstone, extraordinária), uma mulher Osage, influente e rica.


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A conjectura desses personagens vai se perfilando e novas camadas são percebidas ao redor do tempo. Tempo este que pode ser questionado, problematizado por alguns, como excessivo e que poderia ser mitigado. O arranjo do filme faz realmente se sentir que muitas coisas acontecem dramaturgicamente, entretanto essa característica e escolha para que essa história seja contada a partir de uma minutagem vista como superlativa, se dá justamente pela complexidade e pelos diversas composições elementares destas personalidades históricas e a profundidade do fato histórico. A decisão de Scorsese pelas proporções épicas se mostram acertadas à medida que se compreende as nuances e especificidades de um contexto que se alinha entre o comportamento, as ações e os resultantes de uma verdadeira tragédia, manchada por traição, desonra e sangue. A narrativa se aproveita do tempo e incorpora diversos ângulos e pontos de vista que vão se delimitando e encontrando um diálogo entre si, ao mesmo tempo que se humaniza e seja possível compreender os pontos de vista, as intenções e interesses de Ernest e Hale. Os Osage ganham voz ativa, não somente no desenvolvimento do arco de Mollie, mas também por outros indígenas que se manifestam e pelo olhar humanitário que personaliza e traz para o espectador a sensação do sentimento de ser aniquilado, violentado e soterrado. Portanto, a adaptação de Eric Roth e Scorsese do texto de Grann, evita simplificações e caminhos fáceis e mastigados e exprime mensagens e códigos mediante situações genuínas e arquitetadas de uma maneira orgânica que traz o etnocentrismo, a violência simbólica despida de maniqueísmos.

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Entre temas e desdobramentos, existe um diálogo coerente com certas obsessões da filmografia do cineasta em questão, entre elas a disputas de poder e influência, romances complexos e de muitas camadas e os enredamentos psicológicos dos indivíduos, isto é, o emaranhado de atitudes, escolhas e posicionamentos que sacramentam uma certa destinação individual e pode ser visto em algumas obras, como exemplo, deixo o imaginário desses fatores atravessado por Frank Sheeran em "O Irlandês" ou até mesmo por Jordan Belfort em "O Lobo de Wall Street". Formalmente existe uma sofisticação da composição imagética que impressiona, os planos generalíssimos que abarcam toda aquela intensidade e evocam sensações vívidas da época e de como isso é incorporado em relação ao enredo, que não economiza em mostrar as localizações em vasta característica, que vão dos biomas até a arquitetura captada com esmero e enquadramentos meticulosos e de amplo domínio da mise-en-scène e da decupagem, mostrando muita harmonia entre Scorsese e Rodrigo Prieto, diretor de fotografia. Prieto é determinante na impressão de texturas entre luzes, sombras e contrastes, note como existem variações de como os homens brancos e indígenas são fotografados. Harmonia esta que também é traduzida em outros departamentos, se por um lado, a direção de arte regida por Jack Fisk e a produção de figurinos liderada por Jacqueline West não apenas deixam a experiência imersiva, como traduzem fidedignamente o contexto e as particularidades impressas, numa denotação de época que esbanja detalhes e enriquece cada momento, gestos e com as vestimentas e as noções identitárias tão bem colocadas conseguem ampliar a força da atuação do elenco. A notória colaboradora de Martin Scorsese, Thelma Schoonmaker faz um belo trabalho em impulsionar ritmo e coesão, nada parece perdido e fora de tom, onde se consegue acompanhar cada detalhe e fragmentos que vão se configurando entre emoções e tônicas reforçadas com consistência e solidez. Leonardo DiCaprio demonstra um domínio corporal exemplar que em suas expressões corporais curvadas e manifestações faciais enfáticas a fim de traduzir esse desequilíbrio e fragilidade moral de um personagem muito ambíguo e complexo que vai revelando facetas e olhares a todo momento. Já Robert De Niro, faz um tipo em que o ator parece muito confortável em representar, ou seja, alguém carismático e, à primeira vista, simpático, mas absolutamente hostil e manipulador, e para isso ele utiliza muito das pausas, silêncios e o repertório expressivo do ator.


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Mas se o trabalho destes dois grandes nomes de Hollywood são admiráveis, é em Lily Gladstone que o filme deposita uma significativa parcela de sua alma, é uma atuação que diz muito em pequenos gestos, é como se ela comunicasse não verbalmente com o espectador a cada segundo em diversas emoções e minúcias, que vão do receio, a paixão, a força até à angústia, impotência e o sofrimento de estar sendo violentada pelo próximo. A cada passo, a cada momento, Mollie percebe o que está acontecendo em sua volta, o apagamento e o processo de invisibilidade, além de revigorizar todos os tipos de comunicações possíveis entregues, neste local que Gladstone amplifica a voz de sua personagem ao longo de um percurso, sim, torturante, e no terço final encontra os momentos mais tocantes, em uma entrega e domínio cênico mais do que admirável. “Assassinos da Lua das Flores” se conclui de uma forma tão memorável e contundente que não fazem restar dúvidas quanto à capacidade de interpretação, sensibilidade artística e alteridade de um realizador que está para sempre (perdão pela jocosidade da palavra), marcado na história do cinema mundial.


O filme estreia exclusivamente nos cinemas no dia 19/10/2023

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